Fishing Expedition: A pesca por provas em tempos de Piracema

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RESUMO: Este singelo artigo buscará, na doutrina e na jurisprudência, teses e exemplos que possam melhor explicitar a correlação entre a fishing expedition e as quebras de sigilo irregulares, definindo-se, inicial e brevemente, a expressão estrangeira dentro do cenário jurídico brasileiro e, em seguida, adentrar ao tema das quebras de sigilo atemporais. Em suma, pretende-se relacionar as teses de modo a apontar que, uma vez realizadas quebras de sigilo indiscriminadas, sem qualquer fundamentação ou lastro temporal atinente ao fato investigado, devem ser consideradas ilegais e seus frutos provas ilícitas, violadores de direitos fundamentais.

Aos marinheiros de primeira viagem, a piracema representa o período de reprodução dos peixes, época em que a pesca é proibida(1). Em trocadilho ao termo americano fishing expedition, esta “expedição de pesca” representa uma busca probatória indiscriminada, ou seja, trata-se de técnica de investigação predatória abstrata, sem rumo, muitas vezes ensejada sem fundamentação, para agentes indefinidos(2), com o intuito obscuro de buscar indícios relacionados a especulações. Não bastasse isso, essa prática dos órgãos investigatórios, quase que impreterivelmente, deve passar pelo crivo do poder judiciário e, uma vez concedida a ordem igualmente genérica e infundada, acaba-se subvertendo garantias constitucionais e, consequentemente, o sistema acusatório, conforme melhor explorado adiante.

Realizados breves apontamentos sobre a fishing expedition, merece atenção, neste instante, a questão sobre as quebras de sigilo para que, em seguida, ambos tópicos sejam relacionados. Pode-se dizer que o sigilo, nada mais é, do que o invólucro de um segredo, algo íntimo, pessoal, que carece de proteção. Assim, tamanha invasão à privacidade e intimidade só poderia ocorrer em hipótese excepcional de necessidade, na qual nenhum outro meio menos invasivo se demonstre capaz para sanar a urgência vislumbrada. Por este motivo, tem-se que tais medidas possuem natureza cautelar, cuja a previsão legal é imprescindível, ou seja, no ramo do direito em que o princípio da legalidade prevalece, não há espaço para o poder geral de cautela(3). Isto, pois, além de previsão legal expressa, a quebra deve ser devidamente motivada por quem a requer e fundamentada por quem a concede, novamente sob pena de subversão ao sistema acusatório. Posto isto, aponta-se as famigeradas quebras de sigilo telefônico, informático e telemático; e fiscal e bancário, respectivamente previstas na lei nº 9.296/96 e LC nº 105/01, as quais serão oportunamente exploradas em exemplos a seguir.

Note que, em ambos momentos, tanto ao explicar a fishing expediction, quanto ao falar das quebras de sigilo, foi mencionada uma possível afronta ao sistema acusatório. Em que pese a suspensão liminar do art. 3º-A(4) (ADI 6298) – dispositivo que prevê expressamente a estrutura
acusatória como sistema adotado pelo processo penal brasileiro – introduzido ao Código de Processo Penal através do Pacote Anticrime, não se pode negar que o sistema acusatório já estava presente no ordenamento jurídico pátrio muito antes de sua previsão literal, há mais de duas décadas, com o advento da Constituição Federal de 1988(5). Em suma, o sistema acusatório preza pela distinção entre as partes processuais: de um lado, a defesa e a acusação, guiadas pelo devido processo legal, contraditório e ampla defesa, supostamente de forma isonômica; e do outro lado, o órgão julgador, imparcial e inerte à proatividade das partes opostas, porém ainda com resquícios do sistema inquisitivo no que tange à produção inicial de provas(6).

São justamente esses resquícios, arraigados numa cultura inquisitorial, que têm potencial de macular o processo penal, especialmente quando técnicas de fishing expediction são chanceladas, por exemplo, mediante a concessão de uma série de quebras de sigilo indiscriminadas na fase oculta da investigação preliminar. O raciocínio exposto adiante ilustrará melhor o risco desta prática probatória predatória face aos direitos garantidos ao investigado.

Partindo do pressuposto de que quebras de sigilo são medidas cautelares, devem ser observadas as condições estipuladas no título IX do Código de Processo Penal. Em paralelo, por tratar-se de medida judicial invasiva, também devem ser observadas as inviolabilidades do inciso X, do artigo 5º, da constituição Federal. Colocando estes preceitos no contexto de uma eventual Comissão Parlamentar de Inquérito, suponha que uma gama de políticos, funcionários públicos e empresários estejam envolvidos em um grande esquema licitatório no período da pandemia, em virtude das excepcionalidades ocasionadas pele estado de calamidade pública, acarretando prejuízos inestimáveis ao erário dos estados e da união.

Constatado o interesse público, instaura-se uma CPI para apuração de tais fatos e, de imediato, uma série ordens para obtenção de dados telefônicos é emitida pela própria comissão, bem como requer e obtém, mediante autorização judicial, a quebra de sigilo fiscal de supostos envolvidos para verificar eventual superfaturamento nos contratos investigados. Ocorre que, dentre os termos que ensejaram as diversas quebras, verifica-se que os pedidos foram realizados em face daqueles que possuíam “os 100 maiores contratos firmados com a administração pública”, entre julho de 2019 até o presente momento.

Neste exemplo, duas ilegalidades chamam atenção: i) um pedido para quebra de sigilo fiscal de um empresário não pode ser motivado, muito menos concedido contra um empresário, mera e simplesmente por ter firmado um contrato de grande valor, afinal fraudes podem ser mascaradas, por exemplo, através de contratos fracionados, visando despistar o órgão investigador; ii) se a suspeita recai sobre procedimentos licitatórios efetuados durante a pandemia, por que buscar dados pretéritos? O art. 58, §3º, da CF é claro ao estipular que as investigações devem ocorrer sobre um fato determinado, lastreado por um interstício específico(7).

Veja como circunstâncias aparentemente simples e plenamente palpáveis são capazes de ilustrar características tão marcantes da fishing expedition. Neste quesito, ressalta-se a questão temporal. Aparentemente, uma leitura fria e isolada do trecho que delimita a busca temporal entre “julho de 2019 até o presente momento” pode passar desapercebido. Contudo, a partir do momento em que as suspeitas recaem sobre fatos vinculados à pandemia do COVID-19, torna-se inadmissível qualquer dado até então protegido por sigilo referente a período anterior a este marco temporal. Aliás, a jurisprudência sobre essa questão é farta(8) e inquestionável(9), não sendo permitido, em hipótese alguma, quebras que não condizem com a contemporaneidade do fato em apreço, ora abarcando período pretérito ao pretendido, ora na hipótese de busca indiscriminada por provas de eventual crime que ainda não foi cometido, ou seja, no caso, buscando especulações sobre fraudes licitatórias que possam vir a ser cometidas, o que é imprevisível.

Atente-se que, em momento algum, foi questionada legalidade da medida da quebra do sigilo em si. Afinal de contas, uma investigação não poderia ser obstruída com mecanismos sofisticados da criminalidade, por exemplo. Em outras palavras, exauridas as possibilidades de obtenção de prova menos invasivas, cabe à acusação comprovar que não resta outra opção, senão a quebra de sigilo, demonstrando uma justa causa para tanto, bem como individualizando e motivando seu pedido dentro das peculiaridades de cada caso. Concomitantemente, caso a ordem seja imediatamente requerida, cabe ao poder judiciário avaliar, dentro da sua imparcialidade, a real necessidade da violação à intimidade e privacidade, evitando sentenças genéricas com sinais inquisitoriais(10).

Desta forma, por mais que a sonoridade da “quebra de sigilo” traga um certo desconforto ou insegurança, deve-se registrar que, uma vez prevista em lei, atendendo os princípios constitucionais, poderá ser executada se observada a pertinência casuística e temporal, bem como a fundamentação de fato e de direito, sob pena de representar técnica de fishing(11). Uma das grandes apostas para evitar flagrantes ilegalidades, como as mencionadas neste artigo, é a figura do juiz das garantias, mecanismo de filtro e verificador de garantias fundamentais do investigado.

Enquanto isso, as pescarias probatórias permanecerão em alta temporada, infringindo direitos fundamentais de cidadão que sequer podem ser suspeitos, visto que a intimidade e a privacidade daqueles sujeitos à quebra são gravemente violados(12). Nesse cenário, destaca-se
que a única diferença entre a pesca na piracema e no processo penal é que, no primeiro caso, os pescadores teriam certeza da farta existência de peixes, enquanto no segundo a pescaria é incerta, quiçá recreativa, visto que, mesmo fisgando alguns peixes, o pesqueiro poderia mandar
devolvê-los à água, assim como um juiz declararia nulas as provas. Em contrapartida, assemelham-se no sentido que, assim como a pesca é proibida no período de piracema, podendo ocorrer apenas sob condições determinadas, em local certo, num determinado intervalo de tempo, a quebra deve seguir o mesmo raciocínio, pois caso seja desordenada, buscando por indícios incertos (no melhor estilo “tiro no escuro”), também deve ser considerada ilegal.

1 Lei 7.653/88 – Art. 27. Constitui crime punível com pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos a violação do disposto nos arts. 2º, 3º, 17 e 18 desta lei.
§ 4º Fica proibido pescar no período em que ocorre a piracema, de 1º de outubro a 30 de janeiro, nos cursos d’água ou em água parada ou mar territorial, no período em que tem lugar a desova e/ou a reprodução dos peixes; […]

2 TRF3, RESE 131510720144036181/SP.

3 CAPEZ, Rodrigo. No processo penal não existe o poder geral de cautela. Conjur, 2017. Disponível em: Conjur, acessado
em 23 set. 2021.

4 Art. 3º – A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

5 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;

6 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. Disponível em: Minha Biblioteca Acesso em: 30 set. 2021: Mesmo os
ordenamentos jurídicos mais modernos, que adotam a prática acusatória como regra, terminam por acolher alguns aspectos do inquisitivo, no mínimo para a primeira fase da colheita da prova, pois mais eficiente e célere. (p. 58)

7 Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo
Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério
Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.

8 Comissão Parlamentar de Inquérito. Quebra de sigilo bancário e fiscal. – Esta Corte, em julgamentos relativos a mandados de segurança contra a quebra de sigilo bancário e fiscal determinada por Comissão de Inquérito
Parlamentar (assim, entre outros, nos MSs 23.452, 23.454, 23.851, 23.868 e 23.964), já firmou o entendimento de que tais Comissões têm competência para isso desde que essa quebra tenha fundamentação adequada, que não só
há de ser contemporânea ao ato que a ordena, mas também que se baseie em fatos idôneos, para que não seja ela utilizada como instrumento de devassa indiscriminada sem que situações concretas contra alguém das quais possa
resultar suspeitas fundadas de suposto envolvimento em atos irregulares praticados na gestão da entidade em causa.
[…] (MS 23843, Relator(a): MOREIRA ALVES, T. Pleno, j. em 10/10/2001, DJ 01-08-2003 PP-00130).

9 A FUNDAMENTAÇÃO DA QUEBRA DE SIGILO HÁ DE SER CONTEMPORÂNEA À PRÓPRIA DELIBERAÇÃO LEGISLATIVA QUE A DECRETA. – A exigência de motivação – que há de ser contemporânea
ao ato da Comissão Parlamentar de Inquérito que ordena a quebra de sigilo – qualifica-se como pressuposto de validade jurídica da própria deliberação emanada desse órgão de investigação legislativa, não podendo ser por este
suprida, em momento ulterior, quando da prestação de informações em sede mandamental. Precedentes.” (MS 23851, Relator(a): CELSO DE MELLO, T. Pleno, j. em 26/09/2001, DJ 21-06-2002 PP-00098).

10 VILARDI, Celso S.; PEREIRA, Flávia R. B.; Neto, Theodomiro D. Direito Econômico: Crimes Econômicos e Processo Penal. 1ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008. Série GVLAW. Disponível em: Minha Biblioteca. Acesso em: 29 set. 2021. (p. 264).

11 RODRIGUES, Anabela. Miranda. Direito Penal Económico. 2ª Edição. Coimbra: Grupo Almedina, 2020.
Disponível em: Minha Biblioteca. Acesso em: 01 out. 2021: Salienta-se, designadamente, que o acesso a correios eletrónicos pode ser, em certas circunstâncias,219 um método
legítimo de obtenção da prova de uma infração cujo cometimento já foi detetado, mas deve ser proibido como técnica de fishing, com o fim de «apanhar» de maneira indiscriminada comportamentos violadores de normas da
empresa. (p. 108).

12 ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. Ed. Florianópolis: EMais, 2020. p. 675.

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