INTRODUÇÃO
Aqueles que se dedicam aos estudos de crimes contra a ordem econômica percebem um raciocínio linear no que tange ao bem jurídico tutelado, o qual compreende a ideia de um direito supraindividual. Esta supraindividualidade pode ser claramente identificada nas cearas do direito ambiental, consumerista e concorrencial, por exemplo, nos quais, para além do meio ambiente, relação de consumo ou atividade empresarial, há todo um contexto fundamentado na dignidade da pessoa humana, que pode ser gravemente ferido mediante o descumprimento de normas pertinentes às respectivas matérias. Ocorre que, dentre os exemplos do direito penal econômico, há um pouco explorado e, por vezes, até mesmo questionado sobre sua especificidade legal em diploma apartado, qual seja, o pertinente aos crimes falimentares. Este artigo fará uma breve introdução sobre o tema, visando identificar se esta matéria, assim como os demais exemplos, abrange o mesmo entendimento de direito supraindividual. Em seguida, serão explorados os tipos penais previstos na lei falimentar, traçando-se um paralelo com os demais tipos já existentes no direito penal clássico, ou mesmo em diplomas legais distintos, cuja finalidade é próxima, senão a mesma, daquela pretendida pela Lei nº 11.101/05. Por fim, será possível apontar a necessidade ou não da existência de tais tipos especiais, bem como sugestionar se o direito civil e/ou administrativo, em conjunto aos dispositivos já existentes no direito penal clássico, já não seria suficiente para satisfazer as intenções preventivas e sancionadoras da lei falimentar.
A tutela jurídica dos crimes falimentares
Os crimes falimentares são considerados especiais, pois, assim como os demais previstos em legislação temática apartada, fora do Código Penal, teria sido criado para penalizar infrações por circunstâncias peculiares ao processo de recuperação judicial e falência, penalizando, em suma, atos fraudulentos que visam o prejuízo de credores da massa falida, ora cometidos pela empresa devedora e/ou seus representantes, ora pelos próprios credores, neste caso, em prejuízo dos demais (ZAFFARI, 2021, p. 186).
Desta forma, partindo do pressuposto de que o direito penal econômico apresenta, em sua essência, o atributo da defesa de direitos supraindividuais, vejamos cenários dentro de algumas áreas deste ramo jurídico, visando apurar se os crimes falimentares seguem o mesmo raciocínio e, por isso, careceriam de legislação especial.
Inicialmente, concernente aos crimes ambientais, note que eventual desastre ou desmatamento pode tanto afetar o ecossistema local, como também refletir a um número indeterminado de serem e pessoas no presente e futuro, atingindo, pois, como prevê a constituição, um direito geracional, logo, supraindividual.
Ato contínuo, crimes contra o consumidor oriundos, por exemplo, de uma desinformação, atingem não só aqueles que já adquiriram o produto ou serviço, mas também aqueles que futuramente o farão, ou seja, uma gama novamente indeterminada, que ora fere a relação de consumo concreta, já existente, ora a abstrata, potencial, motivo pelo também alcança o campo supraindividual.
Lógica semelhante acompanha o direito concorrencial, como nos casos de cartéis, nos quais o arranje comercial pode impactar tanto os concorrentes, quanto, principalmente, o público-alvo daquele ramo, mais uma vez indistinto, superior ao mero direito particular, já que do mesmo modo supraindividual. Veja que os casos acima exemplificam hipóteses cuja lesão tem amplitude indeterminável, característica que se estende às [potenciais] vítimas atingidas, face a vasta gama de efeitos dos atos praticados. Esta conclusão, porém, não parece ser a mesma para os crimes falimentares, onde o bem jurídico tutelado encontra certas limitações, visto que o foco é a proteção dos interesses dos credores da massa falida, ou seja, com extensão delimitada e determinada.
A partir desta comparação, pode-se dizer que a ideia de supraindividualidade acaba afastando-se dos crimes falimentares, restringindo-o, aparentemente, a interesses mais contidos, já que delimitados ao âmbito da massa falida e a credores já determinados, em regra constituídos através de títulos executivos pendentes de acerto.
Ressalta-se que a intenção não é desconstruir ou discordar com as disposições penais constantes na lei falimentar. Isto, pois, como bem destaca Marcelo Barbosa Sacramone, há corrente doutrinária tendente a entender que os tipos falimentares representam, na verdade, crime contra a administração da justiça (2021, p. 185), o que abriria o leque de proteção jurídica assemelhando-se às demais cearas jurídicas supra. Contudo, não é este o entendimento prevalecente, muito menos o que a leitura da lei demonstra, motivo pelo qual se fez necessária a exposição das nítidas diferenças entre as áreas ora parametrizadas e a matéria em apreço que, em tese, compartilham o mesmo espaço no direito penal econômico, tendo esta, porém, objeto nitidamente mais restrito.
Aliás, como será explorado adiante, nota-se que, dentre os poucos (onze) tipos falimentares, o legislador parece não ter se preocupado muito além da proteção dos interesses dos credores da massa falida, estendendo-se, no máximo, a questões de sigilo comercial, obrigação de registro fiscal e mecanismo de defesa à empresa contra falsas comunicações que visem a falência ou recuperação judicial da empresa injustificadamente, por exemplo e a seguir explanados.
De todo modo, conforme referidas questões são analisadas, os detalhes levam à conclusão de que todos estes atos visam proteger os credores da empresa, já que qualquer reflexo delas decorrentes poderia acarretar prejuízo financeiro ou sanção pecuniária (administrativa-tributária)(1) significativo e, consequentemente, afetar a liquidez da empresa face aos seus credores. Tudo isso confirma as limitações do tema sob estudo se comparado a outros sistemas supraindividuais supostamente equivalentes, acima elencados, merecendo, portanto, serem analisadas as infrações falimentares, de forma individualizada, traçando-se um paralelo com os tipos penais já existentes, de modo a identificar a real necessidade da existência de certos dispositivos na lei de recuperação judicial e falência.
Tipos penais falimentares no contexto do direito penal clássico
A exposição a seguir, adentra os tipos penais em espécie, previstos na lei nº 11.101/05 e, em paralelo, busca pinçar tipos penais já existentes no ordenamento jurídico que, eventualmente, possam abarcar objeto jurídico semelhante, senão igual ao previsto na lei especial, restando, ao fim, aqueles que de fato parecem ser próprios da legislação falimentar, sem dispositivo equivalente.
Inicialmente, merece atenção expressão constante em quase todos os dispositivos a serem estudados, qual seja, aquela atinente ao momento do crime, assim delimitado pela lei: “antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial” (expressão constante nos artigos 168, 172 e 178, da lei nº 11.101/05). Nesse sentido, não obstante o momento ser “amplo”, pois capaz de abranger atos anteriores e posteriores à referida sentença, é imprescindível apontar que este marco temporal diz respeito à sentença homologatória de recuperação extrajudicial e à sentença que decreta a falência ou recuperação judicial.
Dito isto, passa-se à análise dos dispositivos de forma livre, iniciando-se com os artigos 168 (fraude a credores) e 172 (favorecimento de credores), em conjunto, já que ambos visam afastar direta e explicitamente qualquer prejuízo ao credor da massa falida, seja mediante a verificação de ato fraudulento, seja por disposição, oneração patrimonial, ou gerador de obrigação que vise o benefício de certos credores em detrimento dos outros, respectivamente. Em paralelo, merece atenção a constatação de Antônio Pitombo, quem aponta que os “atos fraudulentos praticados na vida civil ou na atividade comercial, não obstante sejam ilícitos na esfera civil, nem sempre configuram infração penal” (2007, p. 551).
Com isso, tem-se, de um lado, o artigo 168, com dosimetria da pena entre 3 e 6 anos e, do outro, o artigo 172 de 2 a 5 anos, os quais muito se assemelham ao texto legal do estelionato do artigo 171, caput e do inciso II, do Código Penal, salvaguardado o contexto peculiar de cada um, o que, porém, poderia ser sanado com a resposta da seguinte pergunta: por que citados tipos falimentares não poderiam ser elencados como qualificadoras do crime estelionato?
Afinal, o tipo qualificado permite, justamente, a elevação da pena base e reparametrização dosimétrica a depender do contexto em que determinado ato é cometido, por exemplo, como ocorreu na fraude eletrônica (art. 171, §2º-A). O mesmo raciocínio e questionamento podem ser aplicados em uma análise “ tête-à-tête” dos crimes respectivamente elencados na lei nº 11.101/05 face aos constantes no Código Penal, adiante apresentados de forma mais breve do que Victor Eduardo Rios Gonçalves pode fazer em seu texto de sinopse jurídica (2018), senão vejamos:
Iniciando-se com o i) artigo 169, referente à violação de sigilo empresarial, face ao artigo 153, relativo à divulgação de segredo; seguindo para o ii) artigo 170, atinente à divulgação de informação falsa sobre o devedor em recuperação judicial, visando a obtenção de vantagem ou, pior, acarretar a sua falência, face aos artigos do Capítulo IV – “De outra Falsidades”, que abarcam diversas falsidades, muitas com o igual intuito de obter uma vantagem em detrimento ao dano de outrem, como no artigo 307; depois o iii) artigo 171, com relação a omissão ou falsificação de informações prestadas no processo falimentar visando induzir a erro as partes processuais, face ao artigo 347, da fraude processual; adiante, o iv) artigo 173, sobre a apropriação, desvio ou ocultação de bens da massa falida, face ao artigo 168, de apropriação indébita; aproximando-se do fim, o v) artigo 174, concernente à aquisição, uso ou recebimento de bens da massa falida por meio ilícito, face ao artigo 180, pertinente à receptação; até que o vi) artigo 175, relativo à apresentação de crédito ou título falsos no processo falimentar, face ao artigo 179, relacionado a fraude à execução, que abarca a simulação de dívidas; e o vii) artigo 178, referente à omissão de registro de documentos contábeis obrigatórios, neste caso, face tipificação externa ao Código Penal, mas relativo à sonegação fiscal da lei nº 4.729/65.
Note que, dentre os 11 crimes da lei falimentar, 9 deles, de algum modo, foram associados a tipos penais já existentes, podendo serem moldados como condutas qualificadoras, ou mesmo como incremento à elementar do tipo, já que, em alguns casos, até mesmo a dosimetria coincide.
Excetuados da “lista comparativa” supra, restaram apenas dois dispositivos, quais sejam, os artigos 176 e 177, estes sim com pertinência exclusiva ao tema. Isto, pois, o primeiro penaliza aquele que, de algum modo, exerceu atividade da qual estiva impedido, justamente em virtude de ordem proveniente dos preceitos da lei falimentar, como preveem, por exemplo, os artigos 102 (inabilitação por decretação de falência) e 181 (aponta a inabilitação para exercício da atividade empresarial como um dos efeitos possíveis a qualquer crime falimentar) de referido diploma. Já o segundo, visa impedir uma manobra das partes judicialmente envolvidas no processo falimentar (juiz, promotor, administrador ou gestor judicial, perito, oficial de justiça, leiloeiro, etc.) que pretendam adquirir bens da massa falida buscando um lucro posterior, visto que possuem acesso a informações detalhadas sobre as condições dos bens do devedor, o que representa uma vantagem considerável e indevida perante terceiros interessados. Este tipo, aliás, faz lembrar aquele constante na lei nº 6.385/76, qual seja, o uso indevido de informação privilegiada no âmbito do mercado de capitais (artigo 27-D), cuja lógica é a mesma.
As vastas semelhanças não se dão sem razão, afinal, o fato de o ordenamento jurídico penal já se incumbir de cobrir uma vastidão de crimes acaba, ainda que involuntariamente, acarretando tal efeito, um carrossel de crimes, cuja especificidade de cada circunstância gira em torno de elementares comuns.
CONCLUSÃO
Este breve artigo teve como missão abordar os tipos penais falimentares em volta de dois questionamentos, quais sejam: i) se a matéria está enquadrada na ceara do direito penal econômico sob a perspectiva de proteger um bem jurídico supraindividual, assim como fazem as outras áreas deste meio relacionados, por exemplo, aos temas de meio ambiente, relação de consumo ou direito empresarial concorrencial; e ii) se haveria a necessidade de tipificação especial, face à dispositivos que comportariam, sem maiores problemas, os tipos comentados seja na modalidade qualificada, seja no abrangimento da elementar, ou mesmo causa de aumento. O humilde posicionamento deste autor não desconhece, ao contrário, respeita a noção de que os direitos falimentares devam ser devidamente cumpridos e protegidos em prol do credor, contudo, há que se dizer que o próprio direito penal, da forma com ose encontra, já seria capaz de satisfazer as intenções preventivas e sancionadoras da lei 11.101/05. A temática se enquadra, ainda, como fora destacado, dentro das possibilidades de sanção civil e administrativa, por vezes igualmente suficientes como mecanismo inibidor da prática de infrações falimentares. Isto, pois, o objeto jurídico é claramente mais restrito, direcionado e determinável do que as outras esferas usadas como termômetro comparativo, entendendo-se, pois, ser possível a drenagem dos tipos falimentares aos crimes ora contrapostos, justamente para que o processo falimentar possa ser mais fluido, bem como, se assim entender necessário o legislador, permitir que outros tipos não previstos de forma específica, possam ser introduzidos ao Código Penal na forma de causa de aumento ou demais modalidades supramencionadas.
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1 A falta de registros e controles contábeis-fiscais poderia incidir em sonegação fiscal, por exemplo, ou mesmo acarretar sanções administrativas perante a Receita Federal, o que, de qualquer modo, poderia afetar os fundos da empresa.